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(Tau-te-King, 16)


segunda-feira, 4 de fevereiro de 2008

Sweeny Todd : : The Demon Barber of Fleet Street : : o intertexto com António Vieira, Robin Hood e o Carnaval de Rabelais


Sweeney Todd : The Demon Barber of Fleet Street


Ontem, deslumbrei-me ao visionar a adaptação cinematográfica da obra de Hugh Wheeler- Sweeney Todd: The Demon Barber of Fleet Street (Sweeney Todd : o Terrível Barbeiro de Fleet Street). Tim Burton, o realizador, elegeu como protagonista de um elenco de luxo, pelas excelentes representações, Johnny Depp, o seu actor fetiche, o inesquecível Eduardo Mãos de Tesoura, que encarna o papel do malogrado e injustiçado Benjamim Parker que, fugido do degredo forçado, com a ajuda de Anthony Hope (Jamie Campbell Bower), regressa à Londres sombria do séc. XIX, sob o falso nome de Sweeney Todd, obcecado pela ideia de vingança, face a uma pretérita vida familiar dilacerada por outrem- pelo maléfico e pervertido juiz Turpin, interpretado por Alain Rickman. Helen Boham Carter, a actual companheira de Tim Burton, interpreta a dúbia e egocentricamente apaixonada Mrs Lovett, o cérebro da fábrica das tétricas empadas cujo princípio activo é, nada mais nada menos, que carne humana fidalga. Sasha Baron Cohen interpreta o pretérito aprendiz de barbearia de Benjamim Parker, convertido em famoso e petulante barbeiro, de seu nome Signor Adolfo Pirelli, e em violento agressor do seu pequeno ajudante, depois de 15 anos passados. A Jayne Wisener cabe o papel da mártir filha de Benjamim- Johanna-, uma frágil e bela adolescente encerrada pelo vilão‑mor numa gaiola de ouro, o pólo do Amor de dois homens, o seu amado e o seu pai, que optam por caminhos opostos para a salvar das garras do pútrido juiz. E last, but not least, Beadle Bamford, o cruel e algo efeminado carrasco a soldo e a mando do torpe magistrado, interpretado pelo sempre magnífico, apesar de horrífico, Timothy Spall.


O fantástico argumento, da autoria de Stephen Sondheim e John Logan, conta-nos a história de uma figura-tipo- um homem cuja sede de vingança o impede de vislumbrar o Amor, acabando por matar a sua amada e quase a sua adorada filha, na sangria desenfreada a que a dor de um negro passado sempre presente o impele. "Nunca esquecer, nunca perdoar"- esse é o seu lema, repetindo a si próprio uma lenga-lenga ritualizada que conta, em traços largos, como a Londres novecentista esconde os maiores vermes que se deleitam nas sarjetas infectas- os tiranos que se encontram no topo da pirâmide social, que se alimentam da tragédia daqueles a quem o poder nem a sorte favoreceu. Lenga-lenga que se assume como um manifesto quase marxista contra a omnipotência de poderes (passo o pleonasmo) despóticos de mentes maléficas que desgraçam a vida alheia por meros apetites ocasionais, como é o caso do juiz Turpin, auxiliado pelo seu carrasco de serviço, a tradicional figura da mão assassina popular que nega as suas próprias raízes, vingando-se e depositando, barbaramente, os seus vis instintos nos seus pares, a coberto das ordens do seu senhor e dono. Todavia, o destino ainda confere uma esperança a Benjamim Parker, uma possibilidade de redenção desse sentimento autodestrutivo, pelo contacto com a pureza de alma de Anthony Hope (António Esperança), um inocente cujos Amor Sublime, visão ainda não consporcada pelo ódio e genuína generosidade acabam por salvar Sweeney Todd do perpétuo degredo e Johanna do seu calvário, ainda que esta seja quase aniquilada, também, pelo pai. No entanto, o amor egoísta de Mrs Lovett funciona como adjuvante da fatídica negra missão do herói maldito e oponente face à sua possível redenção pacificadora. A sintonia entre estes dois sentimentos negativos- a vingança e um amor autocentrado- contribuem para a criação de uma empresa do Mal, denunciada pela voz da loucura lúcida- a da própria mulher de Benjamim Parker, por ele julgada morta, que, 15 anos antes, depois de violada, vilipendiada e afastada da filha pela cupidez lúbrica do juiz, se refugia na mendicidade e nos meandros da insanidade, aguçando, no entanto, a sagacidade da demência. De facto, respeitando a moral de mitos ancestrais, a verdade é enunciada pela voz dos loucos, enquanto a maior das loucuras é revelada como provindo das mãos da racionalidade fria despoletada pelo desejo de vingança. Nesta tétrica narrativa, a vingança serve-se, de facto, fria, gelada, mas engole-se a ferver, derramada com o próprio sangue que jorra em catadupa das jugulares outrora pulsantes, arrasando toda e qualquer réstia de esperança de redenção. Aquilo que, no início do filme, é enunciado como um acto de salvação pelo próprio malogrado Benjamim Parker, transforma-se na sua inexorável perdição, enquanto Sweeney Todd, o justiceiro negro.

O filme é, com efeito, uma grande metáfora da perdição adstrita à obsessão pela vingança enquanto projecto vivencial, que acaba por ter como principal vítima o seu mentor. Quando o sofrimento atroz de um passado se sobrepõe a uma esperança de um presente sempre futuro, surdo a caminhos alternativos enunciados por potenciais protagonistas que, enganosamente, são tomados por figurantes, o destino confere ao sujeito o que este lhe pede: a irremediável perdição eterna.

Muito interessante, também, a alusão a um canibalismo pleno de justiça popular à Robin Hood ou mesmo, intertextualmente, ligado ao Sermão de Santo António aos Peixes do Padre António Vieira, que versa sobre "os peixes grandes que comem, engolem, devoram os pequenos". Lemas justiceiros e alegorias moralizantes que seriam, aqui, actualizados como "matar os ricos para os dar de comer aos pobres", numa inversão literal da cadeia alimentar adstrita aos poderes mundanos- os peixes miúdos, sem o saber, deleitam-se a comer os graúdos, agora, transformados em recheio das nutritivas empadas de Mrs Lovett, depois de chacinados pelas aguçadas navalhas de prata de Todd.
Um leitmotiv muito a propósito numa época carnavalesca, que permite aos mais pequenos um mundo, temporariamente, às avessas, talvez, para refrear recalcamentos, frustrações e tensões, acumulados na sua condição de eternos dominados, durante o tempo restante. Uma ideia muito próxima da expressada por Rabelais a propósito do carácter utópico do carnaval renascentista, dado que experienciamos uma época festiva que permite a inversão dos papéis sociais, dando a possibilidade ao bobo de desempenhar, ficcionalmente, o papel de senhor e ao senhor de interpretar o de bobo, a bem da higiene do globo e da manutenção dos intemporais privilégios!
Um filme a não perder e a, mais tarde, rever!

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