"A Grotesque Old Woman, (circa 1525-30)
Quinten Massys, 1465 - 1530, The National Gallery, London" ©
O episódio caricato que envolveu Sua Majestade o Rei de Espanha e o presidente da Venezuela, Hugo Chávez, fez-me lembrar uma conversa que tive há bem pouco tempo com um grande amigo meu, uma das pessoas mais puras e educadas que conheço. Dizia ele que, hoje, a arrogância e, tantas vezes, a má educação, constituem o paradigma dominante. Dei-lhe toda a razão. Hoje, numa sociedade onde até na publicidade se faz a apologia do “quero, posso e mando”, a petulância, a arrogância e a má educação são elogiadas por sujeitos que veneram, claramente, um darwinismo social amoral, e, tantas vezes, imoral, características, frequentemente, confundidas com personalidade, com liberdade, com espírito revolucionário. Acontece que o conceito de liberdade se encontra adstrito, fundamentalmente, ao de responsabilidade e de respeito pelo(s) interlocutor(es), caracterizando-se uma personalidade forte por traços como carácter, coragem e dignidade, qualidades fundamentais também num autêntico revolucionário, nada devendo, portanto, à má educação, nem à arrogância ou petulância. Daí que não me espantasse verificar que muitas pessoas, ao assistirem à contenda entre os dois representantes destas duas nações hispânicas, criticassem veementemente a resposta do rei, depois de, repetidamente, Chávez, estando numa cimeira ibero-americana, que exigiria, em princípio, um trato civilizado entre os vários participantes, ter verbalizado uma série de ofensas ao ex-PM espanhol, Aznar, não permitindo sequer que Zapatero actualizasse o seu direito de expressar, condignamente, a sua indignação perante os qualificativos menos dignos que saíam repetidamente da boca do venezuelano. Latino-americano que, outrora, sonhou ser um boxeur nos EUA, talvez por isso conceba o espaço público como um ring de boxe. Freud explicaria muito bem esta sua propensão para a violência. Não sei se será pelo facto de ter visto esse sonho frustrado ou pela sua anacrónica ideologia, verdadeira obsessão por Fidel Castro e tendências claramente despóticas acirradas por uma boçalidade insultuosa, que Chávez elege como
hobby fulcral a ofensa gratuita e pública a chefes de estado que odeia visceralmente, nomeadamente George W. Bush, a quem apelida de Mr Danger. No outro dia, estando eu a assistir ao espaço noticioso de prime time da SIC, deparei-me com uma montagem cómica, se não anunciasse algo de trágico, onde aparecia o ex-candidato a boxeur no
El Dorado norte‑americano, a actualizar, por diversas vezes, esse seu passatempo favorito. Dizia a criatura:
“Mr Danger jo [a personagem troca o y grego que, no caso deste pronome pessoal anglófono, se lê i, pela palatal sonora castelhana j]
are a donkey!” Acrescentando na língua hispânica, uma vez que não sabe dizer mais alguma frase em Inglês:
“Mr Danger, tu eres un burro, eres un alcohólico, eres um borracho!” Que palavras edificantes para um representante de uma nação, que educação, que graciosidade, que personalidade, que sentido de liberdade e de responsabilidade de estado tem esta personagem que se dirige a uma cimeira para provocar outrem, ofendendo, sem admitir resposta e ainda exigindo desculpas dos ofendidos. Que espírito democrático enuncia esta
gaffe em forma de gente ao permitir que uma deputada da sua cor política esbofeteie, em plena transmissão televisiva e em directo, um jornalista até lhe partir os óculos, com total impunidade! Mas, que estou eu a dizer? Afinal não é, como dizia o meu grande amigo, esta a lógica primacial contemporânea- alguém agredir arrogante, directa ou sub-repticiamente quem não gosta, quem não comunga dos seus ideais, quem não partilha das suas convicções, e quem se opõe aos seus interesses, quase sempre muito particulares? E, depois da agressão, julgando-se o agressor com um poder desmedido e o centro do universo, não é comum, hoje, a criatura exigir um pedido de desculpas da parte de quem provocou até à exaustão? De quem recebeu uma resposta não proporcional à violência do seu discurso? E não é comum ainda ter o desplante de tentar distorcer os factos, vitimizando-se e cativar as simpatias de pessoas com uma memória tão curta? É que é preciso descaramento-a criatura ofende alguém em público repetida e exultantemente, recebe como resposta um pedido em tom civilizado para não continuar naquele seu registo ofensivo, continua desbravida e petulantemente em tom agressivo, até que é confrontado com quem não tem estatuto social para aturar conversas de soleira de porta de porteira, transportadas para uma cimeira de chefes de estado, reunião que deveria respeitar as leis da civilidade mínimas. Mas, claro, para certas mentes, quem teve a culpa foi o Rei, ele é que se excedeu. Excedeu-se como? Só o mandou calar e, claro, os espanhóis não utilizam os formalismos a que nós portugueses estamos acostumados. Não estava a ver qualquer
nuestro hermano a dizer: " V. Exa, queira desculpar-me, poderia calar-se, por favor?"! Ou teria Sua Majestade que o ouvir, repetida e exaustivamente, ofender o povo espanhol, personificado num seu ex-governante, e bater-lhe palmas no final? É essa a imagem de dignidade institucional que hoje se detém? Haja decência e paciência!
Mas, claro, com isto não quero dizer que os representantes portugueses tivessem de se solidarizar com os espanhóis- se fosse ao contrário, não vejo que
nuestros hermanos pusessem em causa os seus interesses para defender a nossa honra! Se estivessem em causa princípios e não interesses isso já seria outra história! Paralelamente, este episódio lembra-me um
post que aqui publiquei sobre a inveja. Dizia eu que, no espaço público luso, os actores sociais revelaram, intemporalmente, a tendência para misturar, indiscriminadamente, as questões pessoais com a posição pública perante fulano ou beltrano e as suas ideias- se A odeia, inveja ou tem qualquer implicação instintiva com B e vice-versa, então A certamente que denegrirá em público B e vice-versa, não baseado em dados objectivos, mas na irracionalidade do ódio e de outros sentimentos menores, mesmo que até concorde em princípio com a sua argumentação. Por vezes, e o que é mais ridículo, as pessoas nem se conhecem verdadeiramente, recorrendo, apenas a estereótipos, ideias feitas e à vulgaridade e cobardia do “diz que disse” no processo de reconhecimento do(s) interlocutor(es), tentando tudo para os denegrir ou afrontar, memo que de formas subliminares. Resultado: apreciam-se, desleal e malevolamente, ideias racionais alheias, travando-se diálogos com base na irracionalidade do ódio e de outros sentimentos mais ligados ao instinto que à consciência, apreciação que deveria ser isenta e estar alheia a
likes and
dislikes particulares. Daí que, não raro, a praça pública se transforme num campo de ataques e batalhas pessoais. E, depois, para além dos protagonistas, há sempre a acrescentar os correligionários cegos de uma e de outra facção que se digladiam, também, muitas vezes, sem ter mais argumentos do que o “eu sou muito amigo de A, logo sou inimigo visceral de B e concordo plenamente com A” ou “os meus interesses próprios obrigam-me a defender a posição de A, logo ataco ferozmente B e faço disso uma causa de vida, até que os meus interesses mudem". Mas, claro, também há aquelas criaturas que vão por modas: é in e/ou seguro atacar A, pois, atacando A, está-se automática e implicitamente a defender a facção de B (…) Isto é, estas tomadas de posição nada têm a ver com questões racionalmente escrutinadas, uma vez que tomam como ponto de partida emoções e relações pessoais, interesses próprios, maniqueísmos redutores e banalidades mundanas e não princípios que, como se sabe, não são tão flexíveis. Conclusão: a primazia da má educação, da arrogância, da petulância e de ódios particulares, sem qualquer discernimento racional, transformam a esfera pública num ringue de uma luta de egos, em vez desta se afirmar como um espaço primordial de debate que, para se afirmar como produtivo, deveria, em teoria, pautar-se pela liberdade e abertura e não fechar-se nestas atitudes instintivas, quase primitivas! Mas, mais uma vez, a prática contraria a teoria! Que tristeza, que pobreza, não franciscana, mas de espírito, que falta de princípios básicos de civilidade e que cobardia degenerar diálogos em lutas de comadres!